sexta-feira, 23 de março de 2012

Mal-estar na civilização globalizada : desencontros entre espaço regulatório e espaço econômico

(Fernando Padovani)

A conjuntura de crise financeira seguida de recessão nos países do G-7 pode ter raízes bem mais estruturais, nem tanto ligadas a eentuais deslizes de política econômica, hábitos de consumo ou vícios do mercado, mas bem mais próximas à incapacidade do modelo de regulação para reverter a curva descendente de competitividade destas economias.

Num contexto de uma nova mobilidade produtiva de caráter transnacional, combinada com uma situação de super-oferta de recursos acumulados no sistema financeiro internacional e de diminuição de oportunidades de investimentos atrativos nos países do G-7, em função da perda de sua competitividade, os modelos regulatórios baseados nas instituições do Estado nacional tendem a ser gradualmente questionados, gerando situações de déficits regulatórios. Seriam dentro destas zonas de sombra da capacidade regulatória que surgiriam as condições de gestação de crises cíclicas, que surgiriam quase como uma condição normal do sistema. Essas crises tendem a contribuir, por sua vez, para sedimentar a redistribuição de poder e riqueza em favor dos novos pólos de dinamismo do sistema econômico internacional.

É preciso ter em conta que muitas das transformações atuais no sistema internacional caminham com passos sutis pelos interstícios das macroestruturas de poder, no subterrâneo das nações. O capital produtivo ganha nova escala de mobilidade, disseminando-se na forma de redes produtivas globais. Na globalização, redes e cadeias libertam, transformam a lógica do espaço econômico (Duarte 2002), e a própria base produtiva da economia mundial, e começam a questionar a eficácia da governabilidade baseada nas instituições de caráter nacional, sejam elas estatais ou privadas. Todo esse processo caracteriza uma transformação que seria bem mais qualitativa do que quantitativa, que vai além do simples aumento da internacionalização, pois se verificam transformações no chão de fábrica da economia mundial, que se transnacionaliza.

Um dos sintomas dessa tendência seria a recomposição do comércio internacional, cada vez mais dominado por transações intra-firma e intra-setoriais, com forte orientação regional. Paralelamente, se verifica um salto significativo dos investimentos estrangeiros diretos em todas as economias. Mais do que a diferente dotação de recursos locais, os fluxos de bens, serviços e capitais parecem cada vez mais seguir o caminho das cadeias produtivas instaladas em escala internacional e geridas a partir de uma lógica transnacional, construindo um "espaço de fluxos", como viria a caracterizar Manuel Castells (1996).

Como um processo paralelo e correlato, verifica-se fora do âmbito econômico o questionamento das identidades nacionais e a multiplicação de outras formas de identidade na Modernidade, diante do relaxamento dos programas estatais de construção da identidade nacional, como apontam E. Hobsbawn (1990) e Z.Bauman (1999).  É nesse sentido que J. Habermas (1979) contextualiza o surgimento dos déficits de regulação, em função exatamente do aparecimento de déficits de legitimação nas sociedades modernas.

A ressalva de praxe merece ser reiterada. Talvez ainda estejamos a várias décadas de um mundo sem Estados, ou pelo menos de um mundo composto por Estados irrelevantes. Os Estados ainda são determinantes e uma parcela majoritária da vida econômica é condicionada por suas políticas. O Estado moderno, na verdade, apenas cedeu pela primeira vez o monopólio completo da regulação social, começando a compartilhar a tarefa de governabilidade com instâncias internacionais, setoriais e subnacionais. Mas, seja como for, uma tendência de longo prazo parece instalada e a direção é clara. 

A disseminação de relações econômicas transnacionais problematiza a regulação do Estado nacional pois seus instrumentos começam a se "atrasar" em relação à velocidade das mudanças econômicas, causando uma perda de foco e um descompasso crescente. São expressões dessas dificuldades regulatórias, por exemplo, a perda de eficiência da gestão de políticas macroeconômicas ou a deterioração de serviços públicos que passam a ser gradualmente ser substituídos por prestadores privados (Dupas 2005). Até mesmo sacrossantas atividades de exclusividade do Estado, como a produção de normas, a execução da justiça e o monopólio da violência começam a ser assumidos por instituições de mercado, como a disseminação da chamada lex mercatória, e de outras formas de soft law e da terceirização do poder de polícia. Até mesmo serviços de segurança militar começam a ser privatizados.

É interessante notar que as ocorrências de situações de déficit regulatório não se referem apenas à pura e simples retirada do Estado do front regulatório. Pelo contrário, novas formas e modalidades de instrumentos regulatórios, estatais e privados, continuam sendo implementados, até mesmo nos mercados financeiros, como os mecanismos de regulação de mercados inspirados pelos Acordos da Basiléia (Freitas 2002). E lembre-se que, até a eclosão da crise do sub-prime de 2008, estes mecanismos não estatais de regulação eram acreditados como o “estado da arte” em matéria de governança. (Cardim 2009)

            Ou seja, mais do que situações de ausência de controle, excesso de liberdade, a economia transnacional parece se defrontar com situações de governabilidade desfocada, em alguns casos, incapazes de avaliar com precisão os riscos, a natureza e os desdobramentos dos movimentos econômicos, que, apesar de estarem presentes de maneira ativa, não consegue detectar e processar o risco, olham ser ver.  Alguns de seus instrumentos de observação, como a contabilidade nacional, ou sistema de tarifas aduaneiras, ou os registros de transações no banco central, não conseguem captar a exata natureza dos fluxos, como no caso paradigmático do registro das transações comerciais intra-firma, que, apesar de representarem pelo menos 50% do comércio exterior das economias nacionais, não são captadas pelos tradicionais instrumentos contábeis.

Uma das contribuições mais originais da chamada escola regulacionista francesa aponta precisamente para o conceito de "desfuncionalismo". Segundo esse conceito, nem tudo pode ser entendido a partir de sua coerência sistêmica, de sua intencionalidade, de sua razão de ser dentro da lógica histórica. Muitas formas institucionais podem ser simplesmente disfuncionais e incoerentes, fadadas mesmo ao desaparecimento. No sistema social, haveria margem para o aleatório e o imponderável, uma vez que cada sociedade vai "tateando" em busca de soluções regulatórias, sempre a partir de análises ex-post. Por definição, situações de grande incoerência ou desadaptação apenas são percebidas como tais após cada crise, num contínuo, e humano, processo de adaptação, de "bricolagem" (Boyer 2004).  As formas de regulação estariam, por assim dizer, sempre correndo atrás das inovações e transformações que ocorrem na esfera econômica. O regulacionista R. Boyer estima que esse gap entre o surgimento de uma demanda na esfera econômica e a consolidação e implementação de uma nova solução institucional adaptada levaria algo em torno de 20 anos. (Boyer 2004)

De maneira próxima, também a escola liberal da nova economia institucional, inspirada pelos estudos iniciais de Olson e Coase, chama a atenção possíveis disfuncionalidade regulatórias, em função dos elevados custos de coordenação envolvidos na sua implementação, devido à complexidade dos problemas ou o grande número de interessados, fazendo com que a racionalidade das escolhas possa se inclinar pela não-ação. Tais custos seriam relativizados quando se consolidar a percepção geral de que da inação em matéria de coordenação poderá gerar custos ainda maiores, o comprometimento da governabilidade geral da economia.

Um paralelo curioso para ilustrar os instrumentos regulatórios enviesados conceitualmente, mas não necessariamente ausentes, para a correta avaliação de riscos foi o estouro da bolha na bolsa de empresas "ponto.com", a Nasdaq, no dia 10 de setembro de 2011, que seria totalmente eclipsado pelos acontecimentos do dia seguinte, naquela mesma região de Nova York. Os acontecimentos da tarde do dia 10 e na manhã do dia 11 guardam em comum a incapacidade de correta avaliação do risco por parte de órgãos reguladores estatais. No caso das empresas de tecnologia, o risco estava camuflado no preço artificial das ações em relação com os balanços das empresas, sendo subestimado por operadores, agências de classificação e pelo banco central americano, gerando margem para a continuidade da inflação dos ativos até o momento de ajuste pelo estouro. Da mesma maneira, os aviões de 11 de setembro parecem ter passado por uma "fresta" institucional de controle, na verdade uma fresta conceitual, uma vez que as informações sobre o risco foram processadas mas subestimadas, uma vez que os sistemas de segurança americanos estavam totalmente focados em analisar os riscos de ataque de uma outra potência estatal estrangeira, permanecendo cegos para os riscos de um atentado perpetrado por um grupo de pessoas associadas sem uma vinculação estatal. Os radares americanos não estavam regulados para identificar ameaças subnacionais.

Não por acaso, os fluxos financeiros internacionais representam o maior desafio regulatório para os Estado nacionais, por se tratar do maior mercado do mundo. Entre 1975 e 1997, segundo dados do FMI, foram registrados na economia mundial nada menos do que 158 eventos de instabilidade cambial, além de 54 grandes crises bancárias (Cardim 2009).  No caso dos mercados financeiros, existe um agravante adicional, de natureza estrutural, que dificulta ainda mais esta tarefa de gestão da estabilidade. Trata-se da situação estrutural de super-liquidez, gerada por vários fatores de acumulação, vigentes desde o começos dos anos 1990.  Menos que deslizes circunstanciais de política econômica, ou até mesmo improváveis alterações nos níveis da ganância humana, a regulação dos mercados financeiros acaba comprometida por esta situação estrutural de empoçamento de recursos combinado com a escassez de oportunidades rentáveis de investimento nas economias do G-7, economias que já foram ricas e hoje se tornaram caras, e de baixa produtividade, e que vivem constantemente sob o signo da estagnação. (Gilpin 2004)

Diante desta conjunção de fatores, torna-se parte da racionalidade normal de mercado debandar atrás de pontos isolados de remuneração, inundando segmentos específicos, sejam eles títulos imobiliários asiáticos, ações de empresas "ponto.com", ou títulos imobiliários americanos.  A dinâmica de formação de bolhas, que se sucedem praticamente a cada quatro anos na economia mundial moderna, provocando ciclos minskyanos de inflação de ativos e de crises de ajuste, pode ser entendida como uma expressão dessa condição estrutural.  

O mesmo vale para a oferta quase irrestrita de crédito para financiar um patamar artificial de consumo, que se deve menos a um consumismo social desenfreado e decadentes hábitos prudenciais de popança (embora eles até existam), estando provavelmente mais relacionada à falta de demanda agregada nas economias estagnantes do hemisfério norte. Essa expansão do crédito, de caráter pró-cíclico, costuma ser observada e endossada entre resmungos pelos formuladores de política como a solução "menos pior" diante da ameaça constante de estagnação.

Depois da instabilidade conjuntural, as marcas na estrutura. As projeções econômicas apontam para uma normalização do crescimento da economia global, retomando sua curva histórica. Mas não com os mesmos atores.  A crise de 2008 atinge as economias européias já em trajetória de produtividade decadente. Sua retomada do crescimento se dará num patamar abaixo daquele vigente antes da crise, que já era baixo, transformando-as em economias submergentes. Pela primeira vez na história moderna, as economias do G-7 deixam de ser predominantes, retraindo sua participação de 70% do total mundial para 49% em 2009, com projeções de 45% em 2012. Essa tendência, muito provavelmente, não será mais revertida, a não ser a longo prazo.

Em tempos de mobilidade de capitais produtivos, os investimentos europeus e japoneses parecem utilizar as redes produtivas globais como caminho de fuga na direção das economias convergentes. A percepção difusa dessas transformações parece gerar sentimentos de insegurança e de mal-estar da era da globalização, inspirando sentimentos reflexos de retorno ao status quo ante. Não deixa de ser curioso o caráter predominantemente conservador das posições antiglobalização, que agora se renovam a partir do hemisfério norte, sendo possível notar até certo milenarismo relacionado aos comportamentos de consumo, investimento e poupança. Mais preocupante, ganha força uma espécie de refluxo nacionalista impregnado de demandas por maior autoridade estatal, demandas entusiasmadas pela saída da zona do Euro, numa nostalgia ou revivalismo de controles nacionalistas de mão forte sobre os fluxos financeiros, sobre a moral dos investidores, sobre os padrões de consumo, sobre as flutuações do ciclo econômico, sobre os humores do mercado e, se possível, sobre as incertezas do mundo. Como se o inconsciente coletivo europeu sonhasse com uma voz de autoridade meridiana e segura, capaz de ordenar a todos: vada a bordo !  Um mal-estar na civilização às avessas, culpados de liberdade e à procura por regras mais severas.

Mas, desde o Brasil, esse mal-estar deve ser relativizado. Seguindo uma tradição secular de importação de ideias eurocêntricas que, por aqui acabam soando fora de lugar, esse euro-pessimismo que atualmente importamos também parece, desde aqui, fora de tom. Os indicadores econômicos e estatísticos sugerem que não é o capitalismo ou a economia globalizada que está em crise, mas sim o capitalismo e a economia globalizada do hemisfério norte.