terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Crise internacional de 2008 e investimento estrangeiro no Brasil

(André Nery)

O declínio do PIB brasileiro no período da crise de 2008 foi muito menor do que se esperava. O êxito do Brasil em lidar com a maior crise desde 1929 deve-se principalmente a remoção da vulnerabilidade externa e a acumulação de reservas às vésperas da crise e a maior solidez das contas públicas.

Foi muito relevante nesse sentido a aplicação de políticas pelo governo. Todavia, no que diz respeito ao esforço fiscal que tanta importância teve no enfrentamento da crise pelos países de economia desenvolvida e destacados países em desenvolvimento, este limitou-se no caso brasileiro talvez, a 1% do PIB, por renúncia de impostos do governo federal na compra de bens duráveis como automóveis, materiais de construção, linha branca e móveis, e atrasos de recebimentos que fizeram do governo um financiador de última instância para empresas com dificuldades de acesso ao crédito.

Por outro lado, a redução de juros entrou em cena muito tarde, tendo ocorrido apenas em janeiro de 2009 a primeira redução da taxa básica, enquanto o agravamento da crise externa teve lugar, de forma dramática, em setembro de 2008. A taxa Selic cairia de 13,75% ao ano para 8,75% ao ano entre janeiro e julho de 2009. Como há um intervalo de tempo entre a queda da taxa básica de juros e seus efeitos na atividade real, provavelmente a política de juros acelerou a recuperação da economia quando esta já estava em curso, vale dizer, em meados de 2009, sem ter sido em si um antídoto à crise ou um mecanismo promotor da reativação.

O governo lançaria mão de medidas de aumento da liquidez na economia, com a liberação entre fins de setembro de 2008 e início de 2009 de R$ 100 bilhões que antes os bancos recolhiam compulsoriamente ao Banco Central. Juntamente com uma ação deliberada de política bancária comandada pelo comando econômico do país para evitar uma crise nos bancos de menor porte, na qual instituições públicas adquiriram participações e compraram carteiras de crédito de bancos em dificuldades, a medida de aumento de liquidez foi relevante, pois abortou a possibilidade de corrida bancária ou de dúvidas sobre a situação de liquidez dos bancos brasileiros.

Estes vinham promovendo uma enorme evolução do crédito para pessoas físicas e, sobretudo, para pessoas jurídicas, tendo por base em ambos os casos o alargamento dos prazos dos financiamentos, sem contrapartida de ampliação de prazos do lado da captação de recursos. Para se ter ideia do boom de crédito que se desenvolvia na economia no momento anterior à crise internacional, basta observar que em setembro de 2008 o crédito crescia 45% e 17,9%, respectivamente, para pessoas jurídicas e pessoas físicas, na comparação com o mesmo mês do ano anterior.

Dada a onda de dúvidas e incertezas que se instaurou quando explodiu a crise internacional, esse intenso crescimento dos financiamentos e o descasamento de prazos que o acompanhava, transformou-se em fator de elevação do risco dos bancos mais alavancados e expostos a captações no interbancário e junto a fundos de investimentos e a grandes empresas. A incerteza se agravaria à medida que iam se tornando públicos os elevados montantes de empréstimos a empresas concedidos em operações casadas com aplicações em mercados futuros de câmbio nas quais as empresas assumiram riscos cambiais. Com a desvalorização do Real foram gerados vultosos prejuízos em muitas empresas brasileiras, o que em setores como o de celulose, alimentos processados e açúcar e álcool levou a quebras de empresas nacionais de porte. No contexto internacional adverso que afugentava potenciais compradores estrangeiros e, dado um apoio financeiro redobrado concedido pela agência brasileira de financiamento, o BNDES, os grandes grupos nacionais foram os principais absorvedores das empresas em crise.

A propósito, o apoio financeiro do BNDES também foi relevante para viabilizar a compra de empresas no exterior por parte de empresas nacionais e por financiar absorções ou associações entre empresas nacionais. Com isso, em vários segmentos da atividade econômica emergiram da crise grupos nacionais com muito maior porte e poderio financeiro. Essa consequência da crise poderá vir a condicionar positivamente em um futuro próximo a inserção de empresas brasileiras no exterior e sua capacidade inovadora, dois traços que as empresas nacionais, sabidamente, deixam a desejar.

As medidas na área de liquidez e de política bancária, portanto, evitaram uma crise de liquidez que, se desencadeada, restringiria de forma aguda o crédito e tornaria inevitável uma recessão de grandes proporções na economia. Um instrumento importante para a recuperação da capacidade de concessão de novos financiamentos por parte dos bancos de menor porte foi a garantia concedida pelo Fundo Garantidor de Crédito aos depósitos a prazo emitidos por esses bancos.

A medida anticíclica mais destacada do nosso ponto de vista não veio nem da área fiscal, nem da política monetária ou de liquidez, a despeito da inegável relevância de cada uma delas. Veio, sim, da orientação que o governo transmitiu aos seus bancos (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES) para que ampliassem seus financiamentos. No início da crise o crédito dos bancos públicos representava cerca de 35% do crédito total, percentual que subiria a 41% (percentual de fevereiro de 2010). No contexto em que os bancos privados contraíam os seus financiamentos, foi esse espaço ocupado pelos bancos públicos o determinante por não ter havido na economia uma crise de crédito entendida esta não somente como a contração do volume de financiamentos concedidos, mas também como uma onda de falências de empresas e de liquidação de ativos. O crédito se retraiu de fato, o que trouxe consequências negativas para a atividade econômica, mas logo pôde ser recomposto, como veremos em seguida.

Nos casos do Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, a orientação do governo no sentido de que essas instituições ampliassem seus financiamentos encontrava correspondência em um grande crescimento da sua captação de recursos, dada a maior preferência do público em manter, no momento de crise, seus saldos de recursos junto aos bancos oficiais. No caso do BNDES, suas operações de crédito já vinham aumentando de forma acelerada antes da crise em função do boom de investimentos em grandes projetos que após uma ausência de mais de três décadas voltou a se apresentar na economia brasileira. Nesse caso, a orientação do governo que por todos os ângulos foi acertada, foi não interromper o financiamento das inversões que de outra forma não seriam realizadas, dada a retração do crédito externo e doméstico e o refluxo que se observava no mercado brasileiro de capitais. Além disso, como já foi visto, o BNDES financiou oportunidades abertas pela crise para aquisições e fusões sob o comando de empresas nacionais, no país e no exterior.

Em suma, propriamente relacionados à defesa do nível de atividade durante a crise e indutores da recuperação após a recessão do ultimo trimestre de 2008 e primeiro trimestre de 2009, podem ser relacionados os instrumentos monetário o qual, todavia, veio com relativo atraso; o instrumento fiscal que, no entanto, pode ser considerado tímido se comparado aos esforços empreendidos em outros países; o instrumento da liquidez, que mais propriamente defendeu o sistema bancário contra o risco de uma crise; e o crédito dos bancos públicos, este sim, o mais ativo promotor da defesa da economia contra a crise e da restauração das condições de volta do crescimento.

Ao lado desses fatores, foi decisiva a manutenção pelo governo das políticas que já estavam em curso, o que teve por consequência a preservação, durante a crise, de certo de nível de gasto e de crédito na economia. Assim, o governo não abriu mão dos vultosos investimentos programados pela Petrobrás e dos demais programas do PAC e procurou ampliar esses investimentos. Criou também dois outros programas relevantes. O primeiro, na área de habitação ("Minha casa, minha vida"), terá maior impacto a partir de 2010; o segundo, transitório (com validade até 31/12/2009, depois prorrogado para 30/6/2010), foi adotado em meados de 2009 na área do investimento. O "Programa de sustentação do investimento", PSI, pode ser concebido como um capítulo da exitosa política de crédito adotada durante a crise e teve grande efeito sobre o investimento corrente, notadamente no investimento mais "leve" (voltado à aquisição de máquinas e equipamentos). Consistiu na redução para 4,5% ao ano da taxa de juros dos financiamentos do BNDES para a compra de bens de capital, praticamente tornando nula a taxa real de juros dos financiamentos de parcela considerável do investimento no país.

Não houve retrocesso em outras decisões do governo como ampliar e reajustar as transferências para famílias pobres (o programa "Bolsa Família") e na concessão de aumento do salário mínimo. O governo também não restringiu o direcionamento do crédito, como por exemplo, no sistema que vincula a captação da caderneta de poupança que teve significativo aumento no ano da crise com o financiamento de moradias. Com isso, foi possível amortecer a queda no setor de construção habitacional. Não houve recuos ainda em programas de elevação dos salários de servidores públicos, mas nesse caso um adiamento ou reprogramação não teria ônus para o crescimento econômico. Com essas medidas, às quais se somariam outras como a ampliação do seguro desemprego, o governo preservou o seu já elevado nível de gasto público sobre o PIB, aumentou o investimento público e ampliou o impacto do gasto por ele induzido na economia.

Isso teve consequência relevante porque evitou que a crise se propagasse para toda a economia brasileira. A sustentação do gasto público "blindou" o setor serviços da economia, responsável por 60% do PIB e grande empregador. Este setor, salvo em segmentos de maior relação com a dinâmica agroindustrial, a exemplo de transportes, praticamente não foi afetado pela crise. Isso significa dizer que os efeitos desta no Brasil, embora graves, ficaram restritos aos setores da indústria e da agropecuária. Nesses casos era inevitável um grande impacto inicial da crise internacional, dada a sua natureza - tratou-se de uma ampla e gravíssima crise de confiança - e as mudanças por ela repentinamente provocadas nas decisões de longo prazo, na disponibilidade do crédito e no comércio exterior. Isso afetaria fortemente a agropecuária (pelo encolhimento do crédito e do comércio mundial) e, sobretudo, a indústria (pelos mesmos fatores, acrescidos da retração do investimento em decorrência do colapso das decisões de longo prazo). Por essas razões, o primeiro desses setores declinaria 5,2% no ano da crise, a indústria, 5,5%, enquanto o setor de serviços mantinha crescimento de 2,6%.

Por outro lado, o gasto público, na medida em que preservou o emprego no setor de serviços, protegeu a atividade em segmentos produtores de alimentos e de bens industriais básicos para a população. Isso não impediu, no entanto, uma onda de demissões com dispensas líquidas de trabalhadores formais acumuladas entre outubro de 2008 a março de 2009 de 692 mil pessoas. Mas, apesar disso, deve ser notado que as demissões ocorreram na indústria (493 mil) e agropecuária (227 mil), mas não no comércio (que no mesmo período contratou 47 mil pessoas) e em serviços (67 mil). Deve ser sublinhado ainda que após esse período todos os setores ampliaram as contratações.

Por não prosperar o desemprego, não aumentou a inadimplência no crédito familiar. Isso, aliado à disposição dos bancos oficiais de deterem fatia maior no crédito pessoal e ao consumidor o que suscitou uma reação competitiva da parte do segmento privado fez com que já no segundo trimestre de 2009 voltasse a crescer o crédito para as pessoas físicas. No segundo semestre ocorreria um início de retomada do crédito para as empresas.

Em suma, a manutenção e o aumento do nível do investimento e do gasto público e a ampliação do crédito em plena crise, foram os determinantes do êxito brasileiro em responder à crise internacional e superá-la com rapidez, minimizando a retração do PIB em 2009. A ampliação do crédito pode ser considerada fator ativo mais relevante para a retomada do crescimento da economia a partir do segundo trimestre do ano passado. Se o Brasil tivesse se aproximado mais de outros países em termos de arrojo na execução de políticas fiscais e de juros, como no caso da China e dos países desenvolvidos, talvez sua economia nem tivesse entrado em recessão e teria acumulado crescimento no ano crítico de 2009.

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